Um dos aspectos mais sensíveis da regulação da inovação disruptiva consiste na reação das (potenciais) concorrentes de mercado à nova entrante. Não se espera uma boa recepção a novos negócios, naturalmente. Mas o que se pode fazer quando as concorrentes tentam judicialmente eliminar o seu modelo de negócios?

A Buser é uma startup que provê soluções de mobilidade em relação a fretamento colaborativo. Trata-se de uma solução engenhosa de economia compartilhada. Buser é somente a intermediadora entre esses usuários e empresas de transporte privado na modalidade fretamento. Os preços são claramente inferiores àqueles praticados pelas demais concorrentes. Se muitos usuários confirmarem o mesmo fretado, a diferença positiva para o consumidor é creditada na conta dele na forma de créditos com a Buser.

Como era de se esperar, as principais concorrentes da Buser, em particular a Pássaro Marrom, começaram a buscar os seus direitos na Justiça requerendo, ao final e ao cabo, seja impedida a Buser de operar, pois a Buser estaria supostamente oferecendo serviço que se equipararia a transporte público

O processo é público e tramita sob o No. 1024518-48.2018.8.26.0053, na 10ª Vara de Fazenda Pública do Foro Central Cível de São Paulo.

É curioso que uma operadora privada de transporte processe outra operadora privada alegando que a segunda exerce uma atividade que se equipararia a transporte público. Nas 51 longas laudas que compõem a inicial da Pássaro Marrom, confesso que tive dificuldade em compreender os argumentos avançados.

Em curtíssimo resumo, Pássaro Marrom afirma que fretamento atende a uma necessidade específica e pontual de um determinado grupo de pessoas, por meio de um contrato firmado entre usuário e transportador, cujo valor depende de negociação entre eles e cujo lastro para prestação de serviço não é a delegação de serviço público. Alega a Pássaro Marrom que a Buser não executa fretamento, mas sim Serviço Regular, que é aquele prestado em Rodoviária, com horário e destino pré-definido, pago mediante tarifa. 

Esse serviço seria regulado exclusivamente pela ARTESP em São Paulo em razão do Decreto Estadual nº 29.913/89. Este Decreto foi revogado pelo Decreto nº 61.635/2015, que de fato regula a concessão onerosa dos serviços rodoviários intermunicipais de transporte coletivo regular de passageiros no Estado de São Paulo. Embora a inicial mencione um Decreto revogado como fundamento de sua pretensão, o novo Decreto de fato possui o conteúdo que se pretende afirmar na exordial.

Em sua defesa, Buser alega que não estabelece rotas, horários e frequência das viagens, mas sim que estas condições são escolhidas pelos usuários com base em uma lista de possíveis localidades atendidas. Atingido um determinado número mínimo de passageiros, é contratada a empresa de fretamento e feito o rateio. Afirma que a Buser não é uma empresa de transporte, assim como Uber, 99 e Cabify não são empresas de táxi, Spotify e Itunes não são gravadores, WhatsApp, Messenger e Telegram não são empresas de telefonia, o Youtube e Netflix não são canais de televisão, o Mercado Livre e Buscapé não são varejistas, Airbnb não é um hotel, IFood e UberEats não são restaurantes e por assim vai.

Penso que Pássaro Marrom imaginava um contencioso mais simples e a eliminação do concorrente do mercado. Contudo, Buser não somente contratou um escritório de advocacia de ponta em São Paulo, assim como conta com parecer favorável do Professor Carlos Ari Sundfeld.

Em brilhante parecer, o Professor Sundfeld ressalta que a Constituição contempla a possibilidade de convivência entre serviços públicos e atividade econômica privada no mesmo setor, a exemplo do setor da saúde. A Constituição visa garantir a prestação de determinados serviços de forma regular, em benefício da população. Fora destes casos, há liberdade de mercado e a criação de reserva de mercado seria inconstitucional.

O processo aguarda sentença no momento.

A minha impressão pessoal com a leitura atenta deste processo não é muito favorável à Pássaro Marrom. Ao que me parece, trata-se um processo apresentado por meio de um subterfúgio jurídico (a suposta interferência das atividades da Buser em uma rota específica no Estado de São Paulo), com argumentos que beiram a contraditoriedade (uma empresa privada impedindo outra empresa privada de prestar atividades que apresentam alguma similaridade) para buscar efeitos claramente anti-competitivos (a expulsão de uma participante do mercado por meio da força).

Lamento que a competição entre a empresa consolidada e a nova entrante seja feita no Judiciário, e não por meio de ajuste de preços ou de eficiência.

Apenas a título de informação, no momento, diversos outros processos discutem a legalidade do modelo de negócios da Buser.

O primeiro processo se refere a uma Ação Civil Pública apresentada pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Processo No. 1033775-97.2018.8.26.0053, tramitando na 2ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo). O processo apresenta argumentação similar àquela da Pássaro Marrom e também se encontra pendente de sentença.

O segundo processo se refere a um mandado de segurança preventivo impetrado na semana passada pela própria Buser no Judiciário paulista requerendo seja reconhecida a legalidade da sua atuação, desde que regulada pela ARTESP (Processo No. 1006271-48.2020.8.26.0053, tramitando na 4ª Vara de Fazenda Pública Foro Central Cível). A decisão em caráter liminar foi favorável à Buser: “(…) determinando às autoridades impetradas que se abstenham de criar óbice, impedir ou interromper viagens municipais intermediadas pela Buser que estejam devidamente autorizadas pela Agencia Reguladora de Transporte do Estado de São Paulo – Artesp com embarque ou desembarque em Piracicaba ou Americana, sob o fundamento de realização de transporte remunerado de pessoas não licenciado/clandestino contratado via aplicativo”.

O terceiro processo tramita na Justiça catarinense entre Buser, FEPASC (Federação das empresas de transporte de passageiros dos Estados do Paraná e Santa Catarina) e ANTT (Processo 5040618-83.2019.4.04.0000) A decisão de 1ª instância foi de parcial procedência para reconhecer a legitimidade do modelo de negócios da Buser, impondo fiscalização de suas atividades pela ANTT sob pena de multa diária de R$ 25,00. Decisão em caráter provisório aumentou a multa diária para R$ 50.000,00 em caso de atuação da Buser sem autorizção da ANTT e o processo também se encontra pendente de resolução.

Apresentamos diversas conclusões sobre esta pletora de disputas acerca da legalidade do modelo de negócios da Buser.

Em primeiro lugar, o modelo de negócios da Buser veio para ficar. Não é de se esperar, neste momento, decisões que declarem a ilicitude do transporte de passageiros privado nos moldes da Buser, tal como desejava Pássaro Marrom.

Em segundo lugar, a Buser será regulada localmente, de tal forma que também não seria de se esperar a continuidade da sua atuação livre de supervisão regulatória. A melhor solução seria prover a cooperação entre as autoridades regulatórias e a Buser para que a regulação seja adequada ao seu modelo de negócio, ao invés de promover a beligerância que estamos presenciando.

Em terceiro lugar, o contencioso de força para expulsar um concorrente do mercado, com base em supostos subterfúgios jurídicos, não vem sendo bem aceito no Judiciário.

Em quarto lugar, é preciso repensar o posicionamento das nossas autoridades regulatórias em relação a estas plataformas. É compreensível e estimulado que seja regulada a inovação. Contudo, no momento, não se vê outra alternativa além de lançar o produto no mercado e esperar as consequências. Poucas entidades, como a CVM, mantém diálogo constante com os agentes inovadores e os espaços de inovação do mercado. Não é saudável que o processo de crescimento destas novas startups seja permeado de batalhas com a própria agência reguladora. Vejamos, já é difícil empreender no Brasil; se os novos modelos de negócios forem recebidos com repulsa e litígio pelas autoridades, esta dificuldade será naturalmente exacerbada.

Como cidadão, eu fico na torcida para que soluções tecnológicas disruptivas sejam estimuladas e cresçam. Quando estas empresas sucedem, elas alteram fundamentalmente o mercado que participam e trazem benefícios a toda a população que utiliza esses serviços.

Nota: eu não possuo nenhuma ligação com as empresas, agências reguladoras ou profissionais envolvidos nestas disputas.